"Admito que existe mesmo um sentido no mundo em que vivemos. Um ritmo. Uma orientação. De leste a oeste. Do inverno à primavera. Do amanhecer ao anoitecer. Da nascente ao mar. Do útero à luz. Mas às vezes penso em Copérnico. No crime de lesa-majestade que ele cometeu na época ao afirmar que não giramos no sentido em que acreditamos girar; que o sentido de rotação do mundo não é o sentido sensível; que ele é oposto àquele que percebemos. Teria a intuição de Copérnico alguma coisa a ver com a questão do retorno, da volta ilógica dos seres à sua origem? O rio desce para o mar, mas os salmões tornam a subi-lo para morrer. A vida se desenvolve do lado de fora do ventre, mas os ursos vão novamente para debaixo da terra, para sonhar. Os gansos selvagens vivem no Sul, mas retornam para colonizar os céus árticos de seu nascimento. Os humanos saíram das grutas e dos bosques para construir cidades, mas alguns voltam atrás e habitam novamente a floresta.
Digo que há algo invisível que impele nossa vida rumo ao inesperado."
— Nastassja Martin, Escute as feras
Citei trechos desse livro em algumas edições nos últimos meses, e trago essa última vez para inaugurar essa edição; poderia, a partir daqui, desenvolver essas ideias de alternância de sentido e de ritmo, tão próprias da astrologia, mas escolhi destrinchar a atual retrogradação de Mercúrio sob outro viés.
Desde que Mercúrio retrogradou, lá no dia 10 de maio, tenho reencontrado certas palavras. Palavras que têm, inesperadamente, desencarcerado sensações guardadas para serem reconhecidas à luz do dia. Em sua simplicidade singular — afinal, são apenas arranjos de letras em determinada ordem à qual conferimos significado —, tenho encontrado palavras que têm me proporcionado compreender acontecimentos e situações de outra forma. Em última instância, tenho encontrado palavras que, carregadas de seus sentidos, têm me dado, sobretudo, mais liberdade.
Quando digo “encontrado”, é de forma fortuita mesmo: verbetes que surgem na cabeça como num passe de mágica, falas em algo que estou assistindo e sintetizam o significado de alguma situação vivida, palavras que escrevi há treze anos atrás e ressurgem por meio de um alerta de e-mail vinculado à conta do diário virtual que eu tinha àquela época, etc. Palavras, palavras, palavras.
Esses processos que relato aqui são pessoais, mas os compartilho porque percebo que eles também refletem aspectos significativos da atual retrogradação de Mercúrio no céu. Não é sempre que a retrogradação de um planeta significa tanta coisa pra alguém, mas essa é uma daquelas marcantes para também a nível coletivo, e vou tentar explicar o porquê. Antes disso, porém, voltemos às palavras.
No começo desse ano, lá na edição #23, escrevi um tanto sobre experiências de êxtase, deslumbramento e situações que beiram o inexplicável ou indizível — conceitos associados à Júpiter, planeta de natureza oposta à de Mercúrio, que trata da lógica e da linguagem. A vida, de fato, não cabe nas palavras, pois ela não é plenamente explicável; tentar verbalizar certos desejos e experiências pode ser um grande contrassenso.
Hoje, porém, cabe falar da situação inversa, que é o que me tem acontecido: quando visão e instinto estão turvos de tal forma que o encontro com certa palavra esclarece o sentido daquilo que tem se vivido. Quando o encontro com uma ou mais palavras desembaraça uma confusão de sensações. Quando um termo lido cria conexões entre uma série de eventos na mente, tornando possível compreender o que se passou. Quando uma fala dita por si ou ouvida de alguém desobstrui o bloqueio de uma memória encoberta.
Escrevo referenciado o passado porque estamos, afinal, numa temporada de Mercúrio retrógrado, aquele que volta atrás. O que Mercúrio deixou, no meio do caminho, e vai agora buscar atrás? — essa é uma imagem que costumo evocar, nesses ciclos de retrogradação. O planeta-mensageiro vive de conectar as coisas e levar a palavra ao mundo, mas às vezes é tempo de parar e ir no resgate de algo que ficou.
“Cada um de nós é mais que um eu, cada um é uma torrente de finados que termina em nossa vida, assim como terminamos em nossos descendentes. Isso é o que se entende por tradição e cultura; que todos aqueles que nos precederam retornam a falar quando falamos, voltam a ver quando vemos, voltam a sentir quando sentimos. Cada um de nós é a ressurreição dos mortos e esse milagre se realiza em cada segundo de nossas vidas”.
— Raúl Zurita, Dreams for Kurosawa [tradução minha]
Vamos aos dados astrológicos, então: Mercúrio iniciou a retrogradação no grau 4° do signo de Gêmeos; nesse fim de semana, Mercúrio atravessa o Sol, combustíssimo (leia as “notas astrológicas” dessa edição), enquanto ativa, ao mesmo tempo, uma estrela fixa chamada Alcyone, das Plêiades — associada a um mito que versa sobre amor, perda, luto e sororidade. Ainda hoje, domingo, Mercúrio reingressará no signo de Touro, onde retornará até o grau 26°, onde se localiza outra estrela fixa importante: Algol, da constelação de Perseu, que remonta ao mito de decapitação da Medusa.
No comecinho da retrogradação, fiz a colagem acima reunindo elementos visuais de ambas estrelas fixas ativadas nesse trânsito, numa tentativa de sintetização simbólica sobre o que conseguia antecipar a respeito dessa retrogradação de Mercúrio. Na ocasião, escrevi o seguinte:
Falar sobre a dor ou a falta sentidas é uma das formas de ajudar a dissolver o nó na garganta que silencia ou impede a voz de se projetar mundo afora: faz o peso guardado tomar a forma leve e ligeira do ar, dissipando a angústia ao vento. […]
Às vezes, o grande feito heróico não se trata de desbravar novos horizontes e decepar cabeças de supostos monstros, mas sim de voltar atrás para libertar uma voz emudecida, ou mesmo remendar uma falha no caminho atravessado.
De lá pra cá, tenho encontrado as tais palavras. Sempre entendendo, é claro, que a palavra pode limitar e enclausurar — mas que não há como negar, contudo, que ela também carrega imenso potencial de libertação.
Essa semana, enquanto escutava o último episódio do podcast Crime e Castigo, tive mais um encontro com as palavras, dessa vez pela voz de Nelly Boonen:
"A desgraça, ela tem que ser descrita na sua real dimensão para a gente poder trabalhar com ela; ela precisa ser objetivada, cartografada — olha, esse aqui é o pedaço: é isso que aconteceu." […]
"Precisamos nos preparar para dizer o fato nu e cru, e com compaixão, obviamente, com todo o cuidado; mas o fato precisa ser expressado. Nomear: o nomos põe ordem no caos; precisamos nomear para ordenar o caos"
Nelly foi uma das entrevistadas do episódio em questão, e trabalha com justiça restaurativa — um tipo de trabalho cuja prática é referente à delicada e complexa lida com um fato do passado que ressoa e afeta no presente.
Dores, falhas, perdas, engasgamentos, silenciamentos, alienações, injustiças, negligências, resgates. Em contraponto — dar forma aos fatos, enunciar as palavras em voz alta, destituí-los de seu peso paralisante, extinguindo a dor em som. É essa curiosa e complexa dinâmica que envolve alguns dos significados mais subjetivos da atual retrogradação de Mercúrio. É fácil, tranquilo, gostosinho? Claro que não. Mas manutenção, reparação e cuidado são práticas rotineiras da vida, a gente é que se acostumou a não parar ou ter horror em voltar ao passado. Pois bem: seguiremos arrastando ele conosco para onde formos, querendo ou não. Essa atual retrogradação de Mercúrio é um trânsito que trata de reparação para também promover libertação do que não precisa mais ser arrastado por aí.
Para não estender demais o assunto e reforçar o viés astrológico, vou apenas mencionar mais uma estrela fixa que apareceu no último eclipse: Alpheratz, da constelação de Andrômeda. Neste mapa, é Vênus quem aparece ativando essa estrela, cujo mito versa sobre negligência familiar, confiança no próprio destino e eventual e feliz libertação — considerando que Vênus rege aí as casas 3 (comunicação, linguagem, deslocamentos) e 8 (perdas, medos e crises), é mais um testemunho de libertação por meio do que se expressa. O mapa abaixo, vale dizer, seguirá tendo importância ao longo dos próximos meses, já que eclipses lunares têm seus efeitos ressoando para meses além do ciclo da lunação em que ocorrem.
Mercúrio retoma o movimento direto apenas no fim da madrugada do dia 3 de junho. Até lá, vale redobrar à atenção às palavras: perceber quando e o que falar, quando silenciar, quando reler ou livrar do que já foi dito ou escrito. Dê o devido reparo às palavras: aos olhos e ouvidos atentos, elas têm comunicado coisa à beça.
Júpiter em Áries, Sol em Gêmeos
os dois regentes anuais dialogam pela primeira vez
“Em várias partes do mundo, vemos o exercício de construir novos horizontes de luta através da produção de inovações políticas e criações institucionais. O Chile discute a implantação do Estado Paritário e do estado Plurinacional, Berlim luta por aprovar uma lei que tabela e diminui o preço dos alugueis, a França discute a criação de um salário máximo e de uma limitação da diferença salarial no interior das empresas (como forma de forçar subir os menores salários), os Estados Unidos, através de Bernie Sanders, discutiram a implementação de uma cota obrigatória de trabalhadoras e trabalhadores no conselho de gestão de todas as empresas.
E nós? Estamos a criar unidade a partir do quê? A partir do medo a Bolsonaro? O quanto isso pode efetivamente funcionar e por quanto tempo? Lutar contra o golpe passa por fazer a política operar no que ela tem de mais forte, a saber, sua capacidade de nos fazer criar futuros, ampliando o horizonte dos possíveis.”
— Vladimir Safatle, O que fazer diante de um golpe em preparação
Li o trecho acima e não consegui não pensar no ingresso de Júpiter em Áries: Áries, afinal, é o signo que representa a queda de Saturno, o signo em que o Sol se exalta e afasta os medos, desconfianças e restrições sombrios saturninos. Mais do que isso, Áries é o início do zodíaco: trata dos começos, da iniciativa, do pioneirismo e liderança. Um Júpiter em Áries promete inovações e alterações significativas na mobilização do poder coletivo e da oposição política.
Ainda pretendo fazer considerações mais “preditivas” a respeito desse trânsito na próxima edição, pois Júpiter ocupará uma posição protagonista na Lunação de Gêmeos que se inicia no dia 30; por ora, faço essa breve pontuação relacionando-o ao ingresso do Sol em Gêmeos, que ocorreu na noite da última sexta-feira.
Como expliquei na edição de previsões anuais, Sol e Júpiter são os planetas regentes para o Brasil — pelo menos, nesse primeiro semestre astrológico, até o início da primavera. O ano astrológico se iniciou com Júpiter em Peixes e o Sol, naturalmente, em Áries; com o ingresso do Sol em Gêmeos, é a primeira vez no ano em que os dois astros conseguem se aspectar, num sêxtil tímido, porém mobilizador: sinal de novidades e alterações na forma em que as dinâmicas de poder iniciaram o ano, lá em 20 de março.
Em Gêmeos, o Sol ingressa na casa 1 do mapa anual para o Brasil, evidenciando nosso contexto de forma geral, como se um holofote fosse colocado sobre o país; trâmites comerciais, questões de tráfego, mercadorias, educação básica e comunicações ganham mais importância. Já Júpiter em Áries entra na casa 11 desse mapa, levando maior importância ao Poder Legislativo (que anda meio em segundo plano frente a tantos embates e fricções entre Executivo e Judiciário), às votações de PLs e às dinâmicas próprias das casas do Congresso.
Em termos mais gerais, a ativação dos regentes anuais nessas duas casas aumenta o potencial de novas atividades, movimentando ações e levando fatos e decisões ao âmbito coletivo, à uma rede de influências e decisões. Numa esfera menos política, o sêxtil entre Júpiter-Sol tende a esvaziar a vaidade, conectando a própria individualidade à esfera de pertencimento, amizade e companheirismo. Novas alianças podem ser formadas, firmadas ou restituídas. Com o pano de fundo da retrogradação de Mercúrio, quem sabe até reatar alguns laços de velhas amizades? Cabe bem no simbolismo desses ingressos.
céu da semana
22 a 28 de maio de 2022
Vamos de rapidinhas, que essa edição já tá longa: semana de Lua minguante atípica, ágil, cheia de aspectos fluidos e fugazes, sem muitos impedimentos ou tensões (à parte, claro, dos engasgamentos de Mercúrio longamente explicados na introdução). Teremos alguns ingressos: além do Sol ter entrado em Gêmeos na última sexta, hoje (domingo) à noite Mercúrio reingressa em Touro e na terça-feira Marte ingressa em Áries.
Hoje, domingo, é o dia mais chatinho, com conjunção de Lua e Saturno e a quadratura dela com Mercúrio. A segunda-feira traz o sêxtil de Sol-Júpiter e a aproximação do sêxtil entre Mercúrio em Touro e Marte em Peixes, que se completa pouco depois da terça; esse último aspecto é bem decepcionante, pois os planetas estão em signos que desapontam um ao outro, o que me parece indicar alguma dissolução ou não-cumprimento de expectativa em relação à alguma negociação em curso.
Terça será o dia mais agitado da semana, com três sêxtis se completando e a conjunção da Lua com Marte e Júpiter em Áries; apesar de agitado, não me parece problemático em si, talvez mais o fervor de novidade no ar, um rebuliço, alguma tiração de sarro, coisa assim.
O resto da semana é relativamente parecido: na quarta e quinta temos sêxtis da Lua em Áries com Sol e Saturno, respectivamente, mantendo um certo entusiasmo inaugurado na terça (atípico mesmo para uma semana de Lua minguante). A sexta traz conjunção entre Lua-Vênus em Áries no início da madrugada, com a Lua entrando em Touro pouco depois, um sextou preguiçosinho. E sábado, por fim, temos o ingresso da Vênus em Touro como único aspecto do dia: a ordem é prazer, passeio, deleite.
No mais, uma semana sem aspectos muito esquisitos ou arriscados, sendo a noite de segunda até a manhã de terça o período mais alvoroçado, e mesmo assim não necessariamente negativo; nesse meio tempo citado, vale apenas redobrar a atenção com finanças (transações, fraudes, etc) e alimentação (intoxicação, gastrite e irritabilidade no estômago pela conjunção de Lua e Marte). E só. Boa semana pra nós!
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poesia e astrologia! como não se encantar com o seu trabalho? cada dia mais sua fã! obrigada por compartilhar tanto conhecimento!
E tinha um Pc do qual morreu há uns três, quatro anos e essa semana eu consegui recuperar o HD com fotos e arquivos pra lá de 2009 e com isso por exemplo fotos de familiares que partiram (alguns de forma trágica) do qual nem se tinham mais fotos. Mostrei à família no grupo de whatsapp e a sensação de toda família foi realmente de conforto e alívio vendo aquilo tudo, rindo e interagindo. MR nem sempre é vilão como todos pensam.