Começo a escrever essa edição numa tarde chuvosa, dia de Lua Cheia em Câncer no céu. Parece um momento apropriado para falar das diferentes qualidades da água, expressas pelos 3 signos desse elemento.
Criei essa série como uma forma de escrever sobre os 12 signos do zodíaco pela perspectiva dos elementos que agrupam os signos, e também a qualidade que eles expressam em sua natureza. Em outras palavras: na astrologia, cada um dos elementos é associado a 3 signos, e cada signo incorpora esse elemento numa qualidade distinta; Câncer é a água cardinal, Escorpião é a água fixa e Peixes, a água mutável. No fim das contas, dá pra falar sobre signo de inúmeros pontos de vista: pelos seus planetas regentes, por seus símbolos, pelas estações do ano, etc. Depois de escrever sobre o fogo, a terra e o ar, hoje chegamos à última parte, sobre os signos do elemento água.
sobre a triplicidade da água
“Toda compreensão súbita é finalmente a revelação de uma aguda incompreensão. Todo momento de achar é um perder-se a si próprio. Talvez me tenha acontecido uma compreensão tão total quanto uma ignorância, e dela eu venha a sair intocada e inocente como antes. Qualquer entender meu nunca estará à altura dessa compreensão, pois viver é somente a altura a que posso chegar — meu único nível é viver.”
— trecho de A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector
Sinto que poderia ter selecionado vários outros trechos da Clarice para introduzir essa edição — Clarice, uma escritora de Mercúrio no signo de Escorpião, parece ter compreendido bem a função que os signos de água têm a desempenhar no enredo do mundo em que vivemos. O entendimento, a explicação ou a razão das coisas é mesmo coisa da triplicidade do ar; no reino das águas, porém, viver ultrapassa qualquer entendimento — outra frase atribuída à ela, aliás.
Antes de tudo, comecemos com uma retomada: se o fogo simboliza o ato de agir, a terra o ter e o ar o pensar, do que trata a água? Do sentir, é claro. Seguindo o raciocínio iniciado na edição anterior, o que a água significa parece uma consequência inevitável de estar vivo: não adiantar fazer coisas, ter coisas e pensar sobre elas; uma parte fundamental da experiência de vida nesse mundo é se conectar com o que existe. Criar vínculo e tecer laços com outros seres, sejam vivos ou inanimados.
Esse anseio de sentir tem muito a ver com o ato de desejar, de almejar unir-se a algo além de si — e se isso soa um pouco místico ou espiritual, não é por acaso: a ideia de sacralidade tem tudo a ver com esse elemento e o desejo de agregar-se a um Todo maior que si. Esse ainda é, afinal, um desejo de vínculo. E os desejos são mesmo múltiplos, imensuráveis e insaciáveis, assim como a água toma infinitas formas: ela é o elemento mais maleável de todos, assumindo a forma do ambiente no qual é despejada quando líquida, contornando os paralelepípedos de uma calçada quando entornada ou correndo livre no curso de um rio.
Na astrologia, a água é um elemento de qualidades fria e úmida. A “umidade”, propriedade compartilhada com o ar, tem a ver justamente com essa maleabilidade, com sua capacidade de adaptação; já a “frieza”, característica que a terra também possui, tem a ver com a natureza de retenção: manter-se em si, não movimentar-se para fora ou expandir naturalmente, diferente de como o fogo e o ar se comportam.
Em termos planetários, a água é associada astrologicamente à Lua e Vênus, os astros que compartilham das qualidades fria e úmida desse elemento. Essas associações são facilmente compreendidas pelos significados das duas:
A Lua também é significadora da memória, das emoções, da sensibilidade e da nossa capacidade perceptiva, sendo ela também a regente da nossa mente emocional ou “anímica” – como uma esponja, a Lua absorve experiências, capta sinais e percebe o mundo à volta de forma instintiva, corporificada, sensorial. [trecho dessa edição]
Vênus simboliza as relações de forma geral, como nós nos unimos e interagimos com outros seres, romanticamente ou não. Ela também representa o que é agradável, belo e/ou prazeroso. As atividades eróticas e sexuais são de Vênus, bem como os fazeres artísticos em suas múltiplas formas. A higiene e a estética também são venusianas, bem como as práticas de mediação, ritualização e diplomacia, embora de forma menos “magnânima” e soberana que Júpiter, que também versa sobre esses temas. [trecho dessa aqui]
O que sentimos e desejamos não surge mesmo por um viés lógico, racional ou totalmente compreensível — tem mais a ver com as impressões subjetivas que absorvemos por meio do corpo emocional (Lua) e com o que nos agrada (Vênus). Nossa necessidade de vínculo e afeto existe, em maior ou menor nível, como uma forma de perceber e sentir (Lua), bem como de desejar e unir-se (Vênus).
É difícil pôr em palavras tudo do que o elemento água trata — a água, invariavelmente, se sente. Pensemos assim: dá para explicar a sensação física do que é mergulhar num rio, sentar debaixo de uma queda d’água na cachoeira ou boiar livremente no mar tranquilo? Até dá. Mas dá pra colocar, em palavras, tudo que se sente quando estamos profundamente presentes, vivendo durante essas experiências? Aí é difícil. Há sempre algo que fica de fora, porque a água também versa sobre o indizível que experienciamos — aquilo que se sente e que palavra alguma dá conta de expressar.
Para além de sentimento e sensação, porém, devemos lembrar que a Lua é significadora astrológica do corpo e da alma, sendo a alma o que anima o corpo físico. A Lua é um luminar e, portanto, também versa sobre a nossa vitalidade: daí vem a relação direta entre a água e o própria conceito de vida, como bem veremos nas qualidades expressas pelos três signos desse elemento.
Por fim, novamente citando o astrólogo contemporâneo John Frawley, que faz uma associação da água com o temperamento fleumático, associado à ela: ele diz que o fleumático aborda a vida por meio de seus sentimentos e impressões, ou seja, pelo que sente e percebe do mundo. Num sentido agravado, um fleumático poderia ficar letárgico, preguiçoso e confuso sobre os próprios desejos — mas de forma equilibrada, faz pessoas extremamente benevolentes, generosas e amigáveis, com uma sensibilidade natural que frequentemente falta nos outros temperamentos. Segundo ele, o que o fleumáticos querem, no fim das contas, é um tipo de “êxtase” no sentido literal da palavra: ficar fora de si. Na vida comum, sentir é o que teríamos de mais próximo disso.
câncer: a água cardinal
Câncer é a onda de água do mar que quebra na margem e umedece a areia, repetidamente. Ou pode ser, também, aquela onda do mar que avança sobre o mangue, levando a água salgada à lama, galhos, folhas e todos os seres vivos que ali habitam — é a água cardinal, uma água em movimento, indo de um ponto a outro. Por isso, aliás, que a imagem da onda é tão boa: é uma água em movimento e com direção, rápida e efêmera, mas pode se refazer indefinidamente.
A água cardinal fecunda e fertiliza, tomando conta das coisas no compromisso de cuidá-las, nutri-las e fazê-las vingar. Toda criação exige uma força motriz que rompe com a estagnação, o que explica o porquê de Câncer ser esse signo de qualidade cardinal: a cardinalidade indica iniciativa e criação de possibilidades. A vida é um esforço, e nada nasce da inércia — o movimento é o que a faz brotar. Portanto, essa é a água que trata da necessidade primordial do alimento, e do próprio desejo de nascer/viver.
Uma boa forma de falar sobre as qualidades da água é pensar em sensações: a qualidade cardinal ou móvel da água de Câncer trata da sensação de criar morada, da segurança de estar em acolhimento. (A experiência da satisfação ao alimentar a si ou a outra pessoa é um bom exemplo.) Seguindo as frases-síntese sobre cada um dos doze signos que elaborei numa edição exclusiva em 2022, Câncer trata de fazer casa por onde passa — sentir a vida por meio da iniciativa de fertilizar e acolher, provendo sustância à ela.
escorpião: a água fixa
Escorpião é um lago de águas paradas em que tudo o que se enxerga é a superfície. O fundo é imperceptível, mas dá para imaginar o tanto de vida (e morte!) que se acumulam lá embaixo. É a água fixa, uma água estagnada mesmo, que permanece como e onde está. É a poça d’agua que se acumula num canto de rua sob chuva, e que demora um tempo a mais para drenar, depois que todo o resto já secou; é também aquelas piscininhas d‘água que se acumulam entre pedras num canto do rio ou da orla, longe das correntes em movimento.
A água fixa é aquela que proporciona a capacidade da resistência: a tensão superficial da água parada cria um ambiente interno propício para conservação das coisas. É uma água que possibilita a sobrevivência por oferecer condições mais estáveis e seguras para que os seres possam se firmar e fortalecer. A vida também exige vigor para resistir frente às dificuldades: se a água cardinal proporciona o surgimento da vida, a água fixa a faz manter-se firme para que continue. A água fixa trata da necessidade da subsistência e do desejo de perseverar.
Em suma, a qualidade fixa da água de Escorpião versa sobre o instinto de defender e proteger, expressando a sensação da segurança de estar numa situação em que há controle. (A experiência de estar responsável por cuidar de um ser humano ou animal vulnerável é um bom exemplo.) Escorpião trata de tomar posição e sustentar defesa — em outras palavras, de sentir a vida por meio da preservação dela mesma, garantindo sua continuidade.
peixes: a água mutável
Peixes é o fluxo de um rio. Uma água mutável, isto é, que modifica seu entorno: modela o formato das pedras ao longo dos anos, lava superfícies, dilui a matéria depositada em sua corrente. Um mesmo rio que forma pequenas poças estáveis nas bordas, mas também áreas com espuma, borbulhas e quedas bruscas d’água: tudo convive — ora de forma harmoniosa, ora caótica — num enorme ecossistema em meio à dinâmica inconstante e variável de suas águas. Às vezes o curso do rio está cheio, às vezes vazio; a corrente pode estar forte ou fraca, variando de forma imprevisível.
A água mutável é a própria amálgama: tem a função de aglutinar, misturar e dissolver tudo numa coisa só, proporcionando um ambiente em que as diferenças se diluem, tornando-o mais favorável para a convivência coletiva. A vida também exige sintonia e comunhão: se a água cardinal gera a vida e a fixa a mantém, a água mutável a conecta a um entorno maior que sua individualidade. Costumo lembrar que não é por acaso que Peixes é o único signo com nome de bicho escrito no plural, e não no singular: o cardume pode mais, e melhor, porque é uma coletividade que age em uníssono e sincronia sutis. A propriedade de transformação é o que marca a qualidade mutável: trata da necessidade de partilhar e do desejo de mudança.
A qualidade mutável da água de Peixes se expressa como essa sensação de conexão e pertencimento, além da segurança de uma afinidade e consciência em relação ao meio em que está. (A experiência de estar numa multidão compartilhando um momento arrebatador ou catártico é um bom exemplo.) Por tais motivos, o signo de Peixes carrega o potencial encantar a vida em uníssono ao todo: senti-la por meio da convivência com sua ampla variedade, promovendo transformação e renovação constantes.
para ouvir
Encerrando a rodada de indicações dessa série, deixo vocês com a última playlist que Mar Muricy fez, inspirada no temperamento fleumático (associado ao elemento água), chamada Dramaturgia. Dá um play aí:
indicação de leitura: os temperamentos em “Ruptura”
Com o fim dessa série sobre os signos como expressões das diferentes qualidades dos elementos na astrologia, talvez alguns de vocês se interessem em saber mais sobre os temperamentos. Esse é um tema mais trabalhoso, que talvez eu até desenvolva na forma de série, nesse ano. Por enquanto, fica a indicação de ler essas notas astrológicas que escrevi sobre os 4 protagonistas da série Ruptura e suas possíveis correspondências com os 4 temperamentos que usamos na astrologia.
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um abraço e até semana que vem,
Isis, tenho Marte e Vênus conjuntos em Peixes e nunca li uma descrição dessa água mutável que me tocasse tanto. Totalmente identificado 💝