🎵 Para ler ouvindo “Segu Blue”, álbum de Bassekou Kouyate e Ngoni ba
o sol recém-nascido que, já muito forte, inunda de luz as portas e paredes de um apartamento quase inteiramente vazio. a janela que recorta um pedaço em azul do mundo lá fora, ao anoitecer. cheiro de outono. um gato que foge das suas investidas de carinho, mas surpreende ao lamber seus dedos dos pés, quando está sentada e distraída. o diálogo honesto entreouvido de uma mãe e filho na rua — "você escuta e não faz, não melhora em nada". o balançar suavíssimo do vento atravessando as árvores da pracinha, enquanto as observo sentada num banco, fazendo terapia por vídeochamada. o debulhar do grão de bico morno com as mãos, aprendendo a diferenciar, apenas pela cor, os descascados (amarelo-vivo) dos que ainda têm casca (mais pálidos e meio rosados). pedalar com velocidade, suar, e passar por um quiosque que toca nos altos falantes “só os loucos sabeeeeeem”, sorrir e cantar junto seguindo o caminho.
Tenho colecionado memórias, frames de momentos que vivi e me jogam pra uma realidade muito imediata, tátil e perceptiva. Como se vivesse sempre flutuando a alguns palmos do chão, facilmente levada pela brisa de um lado a outro, e de repente tivesse os pés afundados numa terra úmida e fresca. Vênus ingressou em Câncer já há uns bons dias, e até minha atenção tão dispersa deu conta da mudança.
Nessa coleção de memórias e momentos, o que predomina não é o registro mental de todos os detalhes que compunham a experiência, sabe? É mais a sensação física de passar por eles, como foi estar ali. Para quem anda vivendo de um jeito muito automatizado e desconectado do próprio corpo, estar com os sentidos aguçados pode parecer até uma onda. Um tipo de sensibilidade e sensação fabulosa de realidade que, às vezes, até esqueço que existe.
Costumo pensar na Vênus em Câncer como uma Vênus inundada de cotidiano, que costura um momento seguido de outro, presente e conectada nesses pequenos pedaços de tempo. Uma Vênus que nos propõe a aprender a saborear a sensação de cada um deles. No fundo, com o tempo, pode-se criar uma desconfiança meio ansiosa de que cada um desses momentos também vai se esvair e mudar, quando menos se espera. Dar conta do que é imediato parece uma prerrogativa incontornável — como pensar no que poderemos ter daqui a 2, 5, 10 anos? Difícil pensar em construir, quando que se tem fome e desejos imediatos. Esses, por mais fugazes e cambiantes, também precisam ser satisfeitos com o cuidado devido.
Que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem barômetros etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós.
— Manoel de Barros em “Memórias Inventadas: A Segunda Infância”
Na astrologia, os signos de água também são chamados de “mudos”, uma qualidade importante em alguns tipos de análise em mapas. Talvez a não-verbalização se trate, aqui, de uma forma de experienciar que seja mais intensamente percebida do que racionalizada. Num momento de tanta opinião, prestar atenção às sensações que as coisas nos provocam é bem importante. Isto é: viver as coisas para elaborar intelectualmente sobre elas, fazer conexões mentais, contar pra alguém ou para muita gente pode ser interessante; porém, corre-se o risco de pular uma etapa que é vivê-las de fato, absorvê-las, saboreá-las.
Amanhã é 16 de maio e Júpiter ingressa em Touro. Daí, Vênus e Júpiter formarão um sêxtil especialmente fortalecido por algumas semanas, até 5 de junho, quando Vênus muda de signo novamente. Nesse trânsito de prosa próxima e fluida entre eles, o convite é de reviver a festa dos sentidos, porque eles, também, são fundamentais. Somos, afinal, um corpo, não (só) uma mente.
Infelizmente, nas últimas semanas colecionei também uma série de sintomas físicos; nada muito grave, mas a insistência de vários problemas e desconfortos na forma de doenças minhas, e das gatas — pasmem, dividimos até uma caixa do mesmo remédio — trouxe um peso diferente. Numa tarde febril e indisposta, acordei de um cochilo com a frase fresquinha que uma pessoa me disse, num sonho muito vívido:
o corpo busca o tempo todo se comunicar com outras versões do que já foi — a pergunta é, para quê/quem ele diz?
As palavras não foram exatamente essas, mas vocês sabem a dificuldade que é organizar na cabeça o que a gente sonha, logo após acordar. Fiquei com esse pensamento do corpo como uma dobra no tempo (lembrar que Saturno está em Peixes, qualquer sombra de linearidade foi pras cucuias). Isto é, ainda que sofrendo e mudando conforme os efeitos desse tempo sobre ele, o corpo, carregado de memória, também devolve e provoca um monte de sensações sobre o que já foi, o que é, o que ainda vai ser. Um corpo que já há alguns anos cruzou as três décadas de vida exige cuidados diferentes de um de vinte. Também já não aguenta “calado” a negociação ingrata de uma rotina que não inclui tempo para ele se esparramar, da forma que quiser. Se tem coisa que antes dava pra sustentar sem maiores desgastes, hoje já não é mais assim.
Nessas coisas que a gente começa a fazer e nem sabe bem o porquê, passei a chamar carinhosamente o último dia útil da semana de “sexta-feira do descarrego”, porque já era o dia da sessão de terapia, e agora também é o que dá pra fazer faxina na casa com menos pressa e encerrar o expediente mais cedo. Ainda não sei o que tantos sintomas acumulados querem dizer (os exames devem ajudar nisso), mas compartilho aqui a pergunta que eu tenho feito a mim mesma nessa investigação físico-sintomática: esse corpo anda com fome e falta do quê, afinal?
Como uma boa catadora de imagens que revira acervos e coleções há anos como parte do trabalho que faço, digo que é relativamente fácil encontrar pinturas, gravuras e desenhos de mulheres nuas posando de forma delicada ou sensual. Nus femininos empunhando espelhos, deitados em bancos, sofás e belas paisagens; outros que miram sedutoramente o autor que as captura, sempre considerando a presença de um observador que não conseguimos ver. Na busca por imagens que ilustrassem essa edição, procurei por alguma que mostrasse uma figura feminina mordendo uma fruta. Não achei. No pior dos casos, achei retratos de mulheres escravizadas segurando bandejas de frutas; no melhor, algo como esse abaixo, de uma certa timidez e doçura, longe de qualquer referência do prazer de comer.
Daí, ampliei pra qualquer obra que mostrasse o momento da refeição de forma prazerosa. Algumas eram bem melancólicas, outras mais festivas, mas nenhuma parecia tratar bem o que eu queria. Acho que o erotismo da alimentação passou longe da produção artística dos últimos séculos — não por acaso, é claro, a gula é um dos pecados capitais dos cristãos, o mito de Adão e Eva envolve uma mordida no que não se devia, etc. O fato é que é bem fácil encontrar naturezas-mortas de frutas placidamente servidas numa mesa, ou até apodrecendo, já meio passadas ou com bichos. Mas alguém se refastelando numa manga, chupando uma laranja, o suco escorrendo pelo queixo? Escândalo. Sorte a minha, lembrei que o que eu queria achar era próximo ao que já tinha visto na foto que um amigo fez, anos atrás.
“Devemos criar prazeres novos. Então, pode ser que o desejo surja.”
— Michel Foucault
Sublinho esse diálogo de Vênus Câncer porque este será um dos aspectos mais favoráveis que Júpiter fará enquanto estiver em Touro (por onde fica até maio do ano que vem). Além de um direito que deveria estar assegurado a todes, comer é um prazer que deveríamos poder usufruir todos os dias, justamente por ser uma necessidade diária incontornável. Mas há muito mais do que alimento nessa atividade — há a satisfação e a saciedade que devolvem vitalidade ao corpo, há as relações que estabelecemos com os ingredientes, há os locais que frequentamos para obtê-las e há as pessoas com quem compartilhamos esses momentos.
Nesse trânsito tão significativo quanto breve, convoca-se o prazer de alimentar e ser alimentado. Uma festa meio instável dos sentidos, em que o possível é melhor que o ideal, e o improviso vale mais do que o planejamento. O melhor que podemos fazer para aproveitá-lo é se entregar à experiência; o pior, privar-se por receio ou preocupação do futuro ou o que quer que seja. Compre frutas, invente uma receita, chame quem gosta para jantar. Alguns trânsitos são tão sutis e breves quanto generosos — sai perdendo quem se atenta apenas à dificuldade.
Sem pensar muito, escrevi essas croniquinhas do recém-inaugurado trânsito da Vênus por Câncer, antevendo outras expressões possíveis da prosa com Júpiter em Touro, que começa amanhã. É mais uma edição extra fora da programação de textos sobre as lunações. Cês gostam desses escritos mais informais de vida-astrologia-vida? Não é coisa pra vir sempre, mas às vezes bate uma inspiração.
Faz tempo que não recomendo nada musical por aqui, e daí propus dar o play já no início da leitura num álbum que conheci recentemente, mas gostei muito. A primeira música soa como um rezo e pode estranhar a alguns, mas garanto que vale a escuta. Ecoando a citação do Manoel de Barros, um som que me encantou sem que eu precise entender uma só palavra.
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um abraço e até a próxima,
Todas essas questões do corpo me atravessaram muito neste tempo de Júpiter em Touro. Faço faculdade de psicologia e concidentemente (rs) tudo que li e estudei nestes últimos meses tratava da natureza corporal das emoções e do equívoco na ideia de que existe uma relação de causa-efeito quase metafísica nas emoções. Como se existisse um "divertidamente" na nossa cabeça apertando botões. Estou entrando muito em contato com práticas grupais e corporais agora no estágio, principalmente com o psicodrama, que vai na contramão da prática clínica tradicionalmente verbal, confessional e católica, que o Foucault aponta problema tão brilhantemente (1976, A vontade de saber). Faz todo sentido agora pensar em Júpiter em Touro com tudo que venho pensando. Não consegui acompanhar as edições desde abril, agora to voltando aqui nas minhas férias pra ver tudo que eu perdi. Que delícia ler esse texto!
Que texto delicioso. Adorei. E também as imagens. Apesar da dificuldade narrada em encontrá-las. E a coincidência: to fazendo um curso sobre monstros com o íra e vi a foto dele aqui e vi que trabalharam juntos no zine monstros. Adorei. As redes se atraem mesmo. 💕