No início da última semana contei lá no Instagram que, na ocasião do segundo turno das eleições, tive um lampejo de vontade de experimentar fazer uns drinks em casa — aquele tipo de desejo banal que surge quando se pode viver de forma um pouco mais tranquila, sem se horrorizar diariamente com o medo de destruição e aniquilamento de tudo que é bom pelo governo de seu país. Não sei como o pensamento sobre essa vontade tão aleatória cruzou minha cabeça num dia de tanta tensão, mas foi isso que aconteceu. Daí, nos últimos meses, comecei a juntar garrafas pra montar um barzinho caseiro e experimentar combinações. Depois de aprender e práticar muitas combinações clássicas de drinks, comecei a ter vontade de experimentar umas misturas minhas também — e a astrologia, como costuma ocorrer nos meus outros trabalhos, veio como inspiração.
Inauguro hoje, então, uma nova editoria mensal que une duas grandes paixões pessoais: a linguagem astrológica e as criações na cozinha. Como mixologista amadora, prometo oferecer receitas em teste, relatos de tentativa e erro e combinações inusitadas de frutas, ervas, bebidas e temperos. Como astróloga, pretendo fazer dessa deliciosa prática uma forma de aprender e estudar as regências planetárias sobre cada ingrediente utilizado, para criar uma receita redondinha tanto pro simbolismo planetário quanto pro paladar. Um tipo de alquimia contemporânea, por quê não?
Para quem não sabe, aliás, todos os alimentos podem ser associados a um ou mais planetas em termos de natureza e afinidade; há tabelas antiquíssimas de associações entre muitas plantas e os planetas clássicos, por exemplo, mas parte considerável do que conhecemos e usamos aqui no Brasil não está listada nesses materiais. Portanto, essa é também uma oportunidade também estudar e tentar criar uma base de referência de regência para as espécies nativas da nossa terra.
Ah, por sorte do destino quem esteve comigo bem na noite da primeira experiência prática desse projeto foi Mar Muricy, amigue do coração que agora vai seguir comigo nessa jornada etílica-mixológica-astrológica pensando e criando junto uma misturinha pra cada Vênus.
Vamos à nossa primeira receita, então?
Um drink para a Vênus em Peixes
Vênus está em Peixes desde 26 de janeiro, mas chegamos com o drink a tempo de honrar esse trânsito dela no céu. Esse é um long drink, feito para ser servido num copo alto, e envolve vários ingredientes — alguns com processos elaborados para produção, inclusive.
a receita
O visual dele é de um líquido levemente opaco e amarelado, com bastante espuma no topo — a Vênus possui muita afinidade com Peixes, portanto, a ideia era criar um drink palatável, suave e envolvente, exprimindo as melhores qualidades venusianas. Só que a “pegadinha” é que esse é um drink até que bem alcóolico, a questão é que não se sente enquanto bebe. E a espuma vem, naturalmente, como referência ao mito do nascimento da Vênus das espumas do mar, já que esse é o signo da água mutável (aquela que se remexe), no qual a Vênus tem sua exaltação. Bora de receita:
os ingredientes
15 ml de aquafaba*
25 ml de licor de jenipapo
25 ml de Martini Bianco (vermute doce branco)
25 ml xarope simples
7 gotas de extrato de baunilha
Junte os ingredientes acima numa coqueteleira com gelo (4 a 5 cubos) e bata até firmar bastante espuma. Em seguida, complete a mistura com:
75 ml espumante seco
75 ml aluá* (fermentado de abacaxi)
Misture os líquidos gasosos suavemente com o que foi batido, até incorporar toda a mistura, mantendo a espuma. Sirva num copo longo com 4 folhinhas de hortelã.
notas astrológicas sobre a criação
A lógica pra construir essa receita foi a seguinte: precisamos de ingredientes associados principalmente à Júpiter, que é regente por domicílio de Peixes, mas também à Vênus, que é regente por exaltação. Além disso tudo, a natureza abundante dos planetas e a forte presença da ideia de mistura me fizeram decidir que era preciso uma combinação de vários ingredientes bem amalgamados, de forma que virasse tudo uma coisa só, sendo pouco perceptível o sabor individual de cada elemento.
A Vênus se faz presente no extrato de baunilha, uma especiaria tradicionalmente associada à esse planeta. O xarope simples, que é feito de água e açúcar, também é venusiano e entrou na receita realmente para adoçar o drink, que não estava doce o suficiente para representar essa Vênus. O vermute é um tipo de vinho fortificado e o tipo doce e branco também pareceu uma boa adição nessa mescla.
Daí, vem a parte Júpiter: a aquafaba (leia sobre ela mais abaixo) é feita da água de cozimento do grão de bico, uma leguminosa jupiteriana, sem dúvida: é um grão grande, gorduroso e nutritivo. A hortelã que finaliza o drink também é uma conhecida erva de Júpiter. O espumante, a meu ver, é meio Vênus e Júpiter ao mesmo tempo: mas como usamos um tipo mais seco, pouco doce, acho que cabe bem pra ele.
Daí vem os dois ingredientes meio controversos: o aluá e o licor de jenipapo. Começando pelo primeiro: o aluá é um fermentado de abacaxi. Eu vejo a fermentação como um processo que pode ter tanto a ver com a Vênus quanto com Júpiter, por se tratar de um processo de proliferação de vida (bactérias, afinal) e que libera gás (a triplicidade do ar é associada à Júpiter). Pensando no abacaxi, ele é uma fruta conhecida pelas propriedades antioxidante — isto é, que combate os efeitos do tempo, sendo a oxidação um processo saturnino de perda de elétrons e corrosão — e diurética (no corpo humano, Júpiter rege os rins). Além disso, o abacaxi é adocicado e ácido (sabores que Paracelso associava à Júpiter) e é um fruto enorme e bem vistoso, com uma flor azulada, cor que também remete à esse planeta. Daí, fuçando a Wikipédia, achei isso aqui:
“O abacaxi é considerado o símbolo da hospitalidade. Para os povos antigos, colocar um abacaxi do lado de fora das casas é sinal de que visitantes são bem vindos.”
Foi mal, não tem nada mais jupiteriano-venusiano que isso aí, pessoal.
Por último, vamos ao licor de jenipapo, um ingrediente que foi incorporado na receita aos 45 do segundo tempo, depois de eu e Mar provarmos a primeira versão e achá-la meio sem gracinha. Primeiramente, o licor é uma bebida bem doce que já remete à Vênus; já o jenipapo parece uma mistura de Vênus e Júpiter, embora tenha algumas propriedades que também lembrem Saturno, o que ainda precisa ser melhor investigado — conforme formos seguindo nos estudos e experimentos, pode até ser que a fruta desse licor mude. Por enquanto, eu me convenci de usá-lo sabendo do seguinte: o jenipapo vem de uma árvore que chega a vinte metros de altura (tamanho grande tem a ver com Júpiter), nativa na Amazônia e na mata atlântica e principalmente nos locais mais úmidos e próximas a rios, sendo inclusive uma planta que aguenta o encharcamento — a umidade é uma qualidade primordial compartilhada pela Vênus e por Júpiter também. Por fim, o jenipapo tem uma bela coloração azul-escura, novamente evocando a cor associada ao grande benéfico, e dela se faz uma tinta, muito usada na pintura corporal indígena (Vênus!).
mais sobre os ingredientes
*Aquafaba é o nome que se dá à água do cozimento de certos grãos, que pode ser batida e usada como substituta da clara de ovo em preparos em que é preciso formar espuma ou bater claras. Eu costumo fazer com grão de bico e não sigo muita medida, mas aqui tem uma boa receita. Como a aquafaba dura pouco tempo na geladeira (uns 3 dias), quando cozinho em quantidade, separo parte dela numa forma de gelo e congelo: quando quero fazer um drink com ela, basta descongelar os cubos que preciso para usar (mas tem que esperar ela derreter pra bater e formar espuma, tá?).
**Aluá é uma bebida afro-indígena latinoamericana muito antiga, também conhecida como tepache pelos mexicanos. É um fermentado que pode ser feito de abacaxi, milho e gengibre misturados, mas eu costumo beber a versão que usa só abacaxi mesmo. Aliás, quem fermenta as coisas aqui em casa é a Giu, minha companheira de vida e amante das artes da fermentação. Foi com ela que eu peguei o seguinte passo a passo:
receita de Aluá
Descasque o abacaxi de forma a deixar uma parte generosa da fruta na casca (corte a casca o suficiente só para tirar os “olhos” do miolo).
Deixe as cascas de abacaxi numa jarra, panela ou bacia e cubra com apx. 1 xícara de açúcar mascavo (pode ser açúcar normal, se não tiver). Escolha bem o recipiente em que for fazer isso, porque ele precisará ser coberto e estará ocupado por um tempo.
Numa panela, coloque 1,5l de água filtrada para ferver. Quando entrar em ebulição, deixe fervendo por uns 5 minutos. Daí, acrescente 1 xícara de açúcar comum, mexa bem e desligue.
Espere a água esfriar até o ponto ideal para a fermentação: ela deve estar quente, mas não muito. Uma boa medida de temperatura é testar botar o dedo na água e ficar 10 segundos sem incomodar.
Coloque essa água fervida e meio esfriada no recipiente onde ficou as cascas de abacaxi com açúcar. Cubra e envolvatodo o recipiente com um pano preto ou escuro (ou com qualquer pano, mas coloque num lugar mais escurinho, na sombra — aqui em casa fica coberto com um pano preto em cima da geladeira da cozinha mesmo, sem neurose, porque não pega tanto sol e luz natural).
Daí você vai deixar esse recipiente com as cascas imersas em água fervida quieto e parado por pelo menos 24 horas: a medida de tempo depende da temperatura e umidade do local onde você está. Aqui no Rio, nos dias frios chega a ficar por 5 dias, mas agora no alto verão fica por 1 ou 2 dias só.
Passado o tempo recomendado, você vai descobrir o recipiente e perceber que se formou ali uma espuma branca e meio nojentinha por cima, na superfície — e é isso mesmo, tem que formar essa espuma, porque é o que indica o início da fermentação. Daí você vai tirar as cascas, coar todo o líquido com uma peneira e usar um funil pra colocar numa garrafa com tampa rosqueável, de preferência uma garrafa pet mesmo.
Botou na garrafa? Aperta um pouco ela pra deixar espaço pro gás surgir, e fecha a tampa (pode dar uma rosqueada normal mesmo, como fecharia qualquer garrafa pet). Agora sim, coloque essa garrafa num local escuro para os deuses da fermentação agirem — aqui em casa costuma ficar dentro de um armário que não abrimos muito, na área de serviço.
Deixa a garrafa lá quieta — por quanto tempo? De novo, depende. Pode ser algo entre 3 e 5 dias, ou até uns 7. Fermentação é uma arte, e esses tempos variam de acordo com o clima de onde se vive. Você pode e deve ir vigiando o estado da garrafa ao longo dos dias: se ela parecer muito inchada, pode ir desrosqueando a tampa de levinho, liberando um pouco de gás, mas sem abrir tudo (você não quer se livrar de todo o gás).
Quanto menos tempo o líquido ficar lá fermentado, mais doce fica a bebida. Aqui nos preferimos ela menos doce, e mais alcóolica (na fermentação, o açúcar é transformado em álcool). A partir de 1 semana ela começa a ficar alcóolica mesmo (uma concentração mais ou menos de 3%), antes disso o álcool é bem sutil e levinho. O resultado final é uma bebida levemente gasosa e alcóolica de abacaxi, a seu gosto. Uma delicinha probiótica para se tomar, enfim — e ainda tirar a onda que faz “refrigerante” de abacaxi em casa. Recomendo demais.
Amei essa edição com playlist, receita de coquetel e tudo mais. Que sucesso!!! 🤩👏👏👏
Tenha um carnaval brilhante, Ísis! ✨💖✨
Isis, adorei a edição, e óbvio que adorei a ideia de pensar sobre comida e planetas hahaha 🤭 Mas tô aqui pensando se não será a fermentação mais próxima de Saturno ou Plutão. O processo fermentativo pode de certa forma criar vida, como você lembra, mas a rigor, é um processo de degradação. É uma degradação controlada, é verdade, porque a gente favorece algumas variáveis do ambiente pra fazer com que determinadas vidas proliferem mas não outras - manter num ambiente anaeróbico, ou deixar os ingredientes imersos numa solução de salmoura basicamente é controlar o processo, a diferença entre ter uma bebida gostosa ou um abacaxi podre em mãos. Embora realmente se prolifere a vida ali, o que acontece com isso é o aniquilamento, a transformação total do ingrediente em uma massa putrefata - a compostagem, por exemplo, também é fermentação (coisa bem plutoniana, e de certa forma também saturnina por conta da transformação que estabiliza) Além disso, no processo fermentativo ocorrem diversas sucessões: uma primeira colônia de leveduras toma conta, transformando os açúcares em gás carbônico e álcool, compostos que por sua vez tornam o ambiente favorável a proliferação das acetobacter. As acetobacter então vão transformar o álcool em ácido acético, mas antes disso acontecer, nesse processo, o ambiente se torna hostil para as leveduras, que morrem. Nesse último estado, também dá pra pensar que a transformação controlada que acontece nesse tipo de fermentação tbm cristaliza a situação do ingrediente (coisa bem saturnina) estabilizando e conservando o ingrediente agora por um longo tempo (nesse estágio, agora transformado em vinagre). Enfim. Adorei essa conversa e pensar sobre o assunto rs beijinhos