Steven Universe tem sido meu alimento noite e dia. Sim, estou exagerando. Mas é um exagero honesto, já que é a coisa que mais tem me dado prazer de assistir nos últimos tempos. O que interessa, porém, é que eu resolvi assistir essa animação, que conhecia só de longe, do início ao fim. Eis que chego lá em certas alturas da primeira temporada e, para evitar maiores spoilers (aliás, não me contem nada, ainda não acabei de assistir!), me limito a dizer que um certo personagem manda o seguinte papo no meio do episódio:
No one can see the future. I can see options and trajectories.
Time is like a river that splits into creeks, or pools into lakes, or careens down waterfalls.
I have the map, and I steer the ship.
“Ninguém pode ver o futuro. Posso ver opções e trajetórias. O tempo é como um rio que se divide em riachos, ou se transforma em lagos, ou desce em cachoeiras. Eu tenho o mapa e navego o navio.”
Eu perdi tudo, claro. Primeiro, porque é sempre uma delícia experienciar qualquer conteúdo de arte ou entretenimento que ilustre de forma criativa as discussões e questões fundamentais sobre tempo e destino. Segundo, porque Steven Universe é mesmo incrível e entrega isso de forma simples, despretensiosa, encantadora e extremamente honesta. E terceiro, porque, bem… a personagem descrever o tempo como um rio que corre, por onde ela navega com um barco e um mapa, é uma referência irresistivelmente astrológica, para passar batida por mim.
Vamos lá: na astrologia tradicional, existe uma coisa chamada metáfora náutica. Era um paradigma utilizado por vários astrólogos do período helenístico (323 a 146 AEC) chamados neoplatonistas, os “herdeiros” dos pensamentos de Platão. Em termos simples, a metáfora náutica propõe a imagem de uma vida humana como se fosse uma embarcação navegando em alto mar.
É uma metáfora complexa, composta por vários elementos que enriquecem e detalham esse cenário: o barco pode ser mais novo ou antigo, em melhor ou pior estado; os ventos podem estar mais contra ou a favor; o percurso previsto para a embarcação pode ser mais ou menos arriscado; fatores externos à embarcação podem atrapalhar ou favorecer a jornada; a tripulação pode ser um conjunto coeso e entrosado, ou se rebelar contra o capitão; o capitão, aliás, pode ser mais ou menos ajuizado, e estar pouco ou muito disposto a obedecer às ordens do dono do barco. Ah, e existe o timoneiro, é claro, aquele que “dirige” de fato o navio: esse é você.
“Plotino usa a metáfora de uma alma a bordo de um navio, enquanto a alma se move pela vida com seu daimon. (…) Os eventos da vida são movidos pelo circuito do céu e seus ventos, e o humano responde tanto ao balanço do navio quanto aos seus próprios impulsos ou desejos.”1
Não lembro bem onde nem quando conheci essa metáfora, mas algo bateu forte desde o primeiro contato com ela. Como eu não costumo ignorar reações especialmente entusiasmadas que tenho conhecendo coisas novas (intuição ou paranoia?), fui atrás fuçar mais a fundo. Para encurtar a história, posso dizer que conhecer e aprender a aplicar essa técnica (porque sim, é uma técnica!) em mapas reviveu totalmente meu interesse pessoal por astrologia natal. Se amo ler mapas natais até hoje, é por causa da metáfora náutica.
Eu comecei a estudar e ler mapas em 2016, bem antes de saber de qualquer coisa sobre essa história. Como aprendi astrologia tradicional, já era bem nítido na minha cabeça que cada mapa natal conta uma história, e uma história em que é possível observar contexto e relações entre si, algo bem diferente da ideia do mapa como “retrato da personalidade”, algo popularizado pela astrologia moderna. E se o mapa natal conta a história de uma vida inteira — ainda que mapas completamentares, como a Revolução Solar, sejam necessários para fazer previsões —, é preciso que a gente enxergue no mapa também alguma ideia de direção e sentido, certo? O fim da história pode não estar ali detalhado, mas minimamente uma indicação pra onde ela vai se desenrolar é necessário. E, com isso, chegamos ao cerne da coisa toda: tal qual um mapa de navegação em alto-mar, o mapa natal tem um destino escolhido para ser cumprido.
Mas vamos com calma. Isso não significa que a sua vida ou a de ninguém está totalmente definida, prevista, escrita em pedra, etc. Eu mesma tô bem longe de ser adivinha; com um mapa natal em mãos, tudo o que eu posso ler são orientações e indicações, rotas possíveis e outras não. Possíveis obstáculos e sortes grandes no meio do caminho. Períodos mais ou menos difíceis, também. Agora, como você faz pra chegar lá? É contigo, campeão marinheiro.
“O destino humano, então, é composto tanto da natureza (o navio em movimento) quanto dos desejos humanos, criando um destino único e não totalmente pré-ordenado, assim como diferentes atores podem desempenhar o mesmo papel em uma peça de muitas maneiras diferentes; eles devem permanecer dentro da estrutura da peça e das falas que lhes são dadas, mas a interpretação é deles.
(…) A reação aos eventos criados pelo movimento do navio metafórico é parcialmente baseada na escolha humana, razão pela qual as mesmas circunstâncias afetam pessoas diferentes de forma diferente, ou por que circunstâncias diferentes podem produzir as mesmas reações nas pessoas.”2
Talvez aqui fique mais fácil de entender qual a grande pira de conhecer o próprio mapa, afinal — é, de forma simbólica, conhecer o percurso da sua própria vida. E isso não é óbvio para todo mundo. Frequentemente uma leitura de mapa consegue jogar luz em certas possibilidades que nem nos nossos sonhos mais selvagens poderíamos conceber, por trauma, falta de confiança ou de perspectiva pessoal. Eu digo por experiência própria: há quem precise de palavras e diagramas desenhos para enxergar o que para outros é percebido de forma espontânea e consciente. Aliás, se tem alguma coisa que a astrologia me ensinou, é que cada pessoa tem uma experiência bem única da vida. O que é fácil ou simples pra um, pode não ser para o outro.
No fim das contas, também gosto de acreditar que, no melhor dos casos, uma leitura bem feita tem o efeito potencial de dar uma certa segurada no estresse e ansiedade, além de direcionar a pessoa para uma postura de mais responsabilidade para com sua própria vida. Saber o que pode ou deve acontecer certamente não nos exime de viver as coisas, muito pelo contrário: se o destino é composto tanto da natureza (a embarcação em movimento) quanto dos nossos desejos (nosso comando sobre o timão que guia a navegação), nós ocupamos um papel fundamental na grande aventura (risos!) que é viver e experienciar tudo isso.
O fatídico episódio de Steven Universe aborda bem esse aspecto, aliás, porque o póbi do Steven dá uma surtadinha quando descobre sobre uma certa possibilidade de previsões do futuro. Só lá nos minutos finais ele consegue ser acalmado, quando um personagem manda a real pra ele de que conseguir prever as coisas não adianta, pois ele tem que ir lá e fazer o futuro que ele quer, de todo jeito.
— Existem milhões de possibilidades para o futuro, mas cabe a você escolher qual se torna realidade. Por favor, entenda. Você escolhe seu próprio futuro.
— Eu entendo. Eu... (Trovão cai, e Steven tem uma epifania.) O que estou fazendo?... Acho que não consigo realmente ver um futuro para mim aqui em cima. *suspira, desliza para baixo do telhado e corre em direção a um abraço* Vou cuidar de mim de agora em diante.
AULAS, CARA.
Claro que confiar no destino e no próprio taco timão não é coisa simples de se fazer, muitas questões em jogo, cada um sabe as durezas da história que carrega. Mas eu genuinamente acho que a astrologia está aí para nos ajudar nesse sentido — e as dezenas de mapas que estudei pela metáfora náutica me são bastante convincentes para mostrar que o babado funciona. Eu desconfio de muita coisa, muita mesmo, mas não do destino. E quanto mais vivo, mais entendo que o medo de viver é o medo de falhar e ter que lidar com as consequências. E, sobretudo, seguir vivendo, pois não é o fim do mundo.
Enfim, a vida não é fácil, mas já que estamos aqui, acho que vambora né? Talvez algumas coisas boas realmente se percam no caminho, ou precisem mudar e se adaptar para seguirem apropriadas à navegação do barco. Mas, dentro de uma jornada longa e trabalhosa, isso é apenas o esperado. O tempo é um rio, lembra? Ele está sempre correndo, e nunca é o mesmo.
Por último, seguindo a temática embarcação, fica a recomendação dessa entrevista com a Tamara Klink, que simplesmente passou 8 meses isolada no Ártico num pequeno barco preso no mar congelado, por livre e espontânea vontade. Todos os registros dessa história me emocionam, e acho que tem a ver com a força e a liberdade que ela consegue experimentar usufruindo da própria vida. (Adoraria ler esse mapa.)
Aproveito a oportunidade para anunciar que estou abrindo novos horários para consultas de mapa do destino, que é como eu chamo a leitura do mapa natal pela perspectiva da metáfora náutica. Para solicitar uma vaga de atendimento, é só acessar esse formulário.
um beijo e até!
As citações foram traduzidas livremente por mim, e são do mesmo livro:
GREENBAUM, Dorian G. The Daimon in Hellenistic Astrology: Origins and Influence,. Leiden: Brill, 2016. p. 132.
p. 133.
Ainda bem que esgotou, pois agora já não consigo, enquanto isso mergulho nessas palavras ondulantes, gosto demais da sua escrita, já falei algumas vezes, todavia repetir é preciso!
O retorno de Saturno da moça foi "presa" num barquinho no ártico, imagina?