edição #92, Vênus atravessa o Sol
de estrela matutina à vespertina: mudanças de fase heliacal
No dia 5 de junho, Vênus ingressou em Leão, vestindo-se do signo do Sol, como se engolisse parte dessa luz que nos aquece e preenche de vida para irradiá-la na forma de desejo, afeto e beleza. “Belezas são coisas acesas por dentro” — um dos trechos musicais que mais me marcou na vida parece ser uma síntese perfeita da Vênus em Leão, um posicionamento que carrega o caminho de viver em autenticidade e de compreensão da vitalidade como um fluxo constante de dentro para fora, sendo necessário aprender a alimentar esse fogo interno que nos mantém vivos e fortes.
Desde junho, muito já aconteceu com a Vênus: ela percorreu até o grau 28° de Leão e, no dia 22 de julho, ela iniciou sua retrogradação. Agora, em movimento retrógrado, a Vênus irá retornar até o grau 12° de Leão, que alcança no dia 3 de setembro, quando encerra sua retrogradação. Nesse mês de agosto, porém, temos um evento importante acontecendo ao longo das próximas semanas: a travessia da Vênus pelo Sol em Leão.
O que ocorre quando um planeta atravessa ou é atravessado pelo Sol? Bom, depende um tanto de qual planeta estamos falando, em qual signo esse encontro ocorre, etc. Escrevi um pouco sobre isso em fevereiro, quando Saturno e Sol se encontraram em Aquário, encerrando a trajetória saturnina nesse signo depois de quase três anos. Só que para Mercúrio e Vênus — que é a que nos interessa hoje —, a travessia pelo Sol traz de forma mais marcada a mudança de fase dos planetas.
“Entre o Sol e os planetas existe uma intrínseca relação de fase heliacal, que transforma os planetas em estrelas matutinas e estrelas vespertinas, modificando seus significados conforme ascendem heliacamente no leste (nascendo antes do sol); pelo oeste (caso em que serão vistos brilhando no horizonte imediatamente após o pôr do sol); ou estão sob os raios do sol.
Este é talvez um dos pontos mais interessantes da Astrologia Helenística, já que a fase helíaca dá uma nuance especial ao significado e influência do planeta, inclinando-o a ser mais diurno e masculino quando o planeta nasce helíaco no leste, e mais noturno e feminino quando o planeta está a oeste em relação ao sol. Note-se que isso não era exclusivo da prática helenística, pois há registros de outras culturas, como os maias, que lançaram sua conquista com a Vênus matutina, a quem atribuíram características extremamente belicosas.”
— Eduardo Gramaglia1 [tradução livre]
Na prática, o que eu chamo aqui de “travessia pelo Sol” nada mais é do que uma conjunção entre ele e Vênus, certo? E isso ocorre todo ano, pelo menos uma vez, às vezes duas. Mas a que vai ocorrer nas próximas semanas é especialmente interessante porque é um encontro que se dá no signo de Leão: em outras palavras, é um encontro entre Vênus e seu dispositor, o Sol, domiciliado e confortável na própria casa.
Nessa travessia pelo Sol, a Vênus em Leão encerrará sua fase vespertina para tornar-se, novamente, estrela da manhã — quando poderá ser observada no céu no fim da madrugada, antes do raiar do dia. Essas mudanças ocasionais de fase que Vênus passa são observadas há milhares de anos por diferentes povos ao redor do mundo, e inspiraram muitas histórias conhecidas até hoje.
Em certa medida, um planeta que atravessa o astro-rei é temporariamente inundado de sua luz, acessando a forja que é a própria fonte da vida, purificando-se e transformando-se em algo novo, fora das vistas dos outros, já que a claridade solar faz desaparecer tudo que se aproxima demais dele. Sem mais delongas, essa é uma edição sobre o rito de passagem da Vênus em Leão pelo Sol.
Demorou, mas chegou: lá no comecinho desse trânsito eu prometi essa playlist da Vênus em Leão, mas a vida aconteceu e eu só consegui finalizar ela na última sexta-feira. Acho que essa é uma das que mais gostei da seleção, de todas que fiz: as letras e significados expressos nas músicas são verdadeiros clichês da Vênus no signo do Sol.
Para costurar o tanto de diversidade de gêneros e estilos musicais, acabei elaborando uma narrativa que atravessa a sequência das faixas — começa com um gosto geral do que esse posicionamento simboliza, e daí segue como se fosse contando as diferentes fases de uma relação, do início ao fim. Por isso, recomendo ouvir essa playlist na ordem criada mesmo (pelo menos da primeira vez!).
Como no projeto das playlists das Luas, essa aqui é composta apenas por artistas que nasceram com Vênus em Leão no mapa — ou seja, para além da curadoria das músicas, teve um grande trabalho prévio de pesquisa de datas de nascimento e mapas das pessoas envolvidas. Tô orgulhosa, viu? Ficou bom mesmo.
a mesma história, de novo e de novo
Um personagem deixa de existir em seu ambiente costumeiro, fica alguns dias desaparecido, onde vive uma experiência importante, e então retorna para seu convívio habitual, agora transformado.
Se a descrição acima soa familiar ou semelhante a muitas histórias que você já ouviu, não é por acaso: foi o que ocorreu no mito grego de Perséfone, quando foi raptada por Hades para ir morar com ele no submundo; com a deusa suméria Inanna e a babilônica Ishtar, que também desceram ao mundo dos mortos; e até com Jesus, quando morreu, foi enterrado e ressuscitou no terceiro dia. É o que acontece, também, com quem se inicia ou passa por certas práticas espirituais no candomblé e umbanda. Ou com quem passa por qualquer evento canônico que exige um período de resguardo e recolhimento antes de retornar à rotina normal.
(Nota pessoal — eu mesma, que venho num ciclo de Vênus há alguns anos, estou vivendo exatamente isso: fiz uma cirurgia de retirada das amígdalas dois dias após Vênus retrogradar, e desde então tive que desacelerar a rotina e ficar em repouso, numa recuperação que é longa e um pouco incômoda. A alta é prevista para 24 de agosto, exatamente no momento em que Vênus ressurgirá dos raios do Sol, após atravessá-lo. Não sei vocês, mas eu amo como a astrologia é certeira.)
É a mesma história, de novo e de novo. E não se trata de coincidência, é claro: várias dessas histórias (se não todas) são mitologizações do desaparecimento de Vênus no céu, que ocorre periodicamente, como expliquei na introdução. Inanna e Ishtar, especificamente, são personificações de Vênus na Mesopotâmia — e foi nessa região que a astrologia deu seus primeiros passos, há milhares de anos atrás, por meio da observação constante do céu a olho nu. A mudança de fase de Vênus é periódica e facilmente perceptível: ela deixa de ser visível no início da noite, pouco após o pôr-do-sol, para ficar visível apenas no fim da madrugada, antes dele nascer. Um mesmo planeta que, por seu ritmo e trajetória celeste, divide-se em duas fases celestes bastante distintas. Dá pra entender a fonte de inspiração de várias dessas narrativas, né?
Esse é um tema que me encanta, mas que comecei a pesquisar recentemente, e venho tentando colecionar essas histórias de “ritos de passagem” que envolvem um tipo de desaparecimento e uma posterior transformação e retomada de vida. Para quem se interessa, indico começar lendo as histórias das figuras que já citei; sobre a de Inanna, recomendo o poema “A descida de Inana ao mundo dos mortos” (um título bastante autoexplicativo) e que data do período paleobabilônico, entre 2000 e 1600 a.C. — não é pouco antigo, é muito antigo mesmo. Foi traduzido para o português por Adriano Scandolara e está disponível aqui.
Para quem não conhece, separei abaixo as partes principais do mito de Cora/Perséfone e Deméter na versão do Junito de Souza Brandão2, do seu Mitologia Grega, Vol.1:
“Core crescia tranqüila e feliz entre as Ninfas e em companhia de Ártemis e Atená, quando um dia seu tio Hades, que a desejava, a raptou com o auxílio de Zeus. […] Core colhia flores e Zeus, para atraí-la, colocou um narciso ou um lírio às bordas de um abismo. Ao aproximar-se da flor, a Terra se abriu, Hades ou Plutão apareceu e a conduziu para o mundo ctônio.
Desde então começou para a deusa a dolorosa tarefa de procurar a filha, levando-a a percorrer o mundo inteiro, com um archote aceso em cada uma das mãos. No momento em que estava sendo arrastada para o abismo, Core dera um grito agudo e Deméter acorreu, mas não conseguiu vê-la, e nem tampouco perceber o que havia acontecido. Simplesmente a filha desaparecera. Durante nove dias e nove noites, sem comer, sem beber, sem se banhar, a deusa errou pelo mundo. No décimo dia encontrou Hécate, que também ouvira o grito e viu que a jovem estava sendo arrastada para algum lugar, mas não lhe foi possível reconhecer o raptor, cuja cabeça estava cingida com as sombras da noite. Somente Hélio, que tudo vê, e que já, certa feita, denunciara os amores secretos de Ares e Afrodite, cientificou-a da verdade. Irritada contra Hades e Zeus, decidiu não mais retornar ao Olimpo, mas permanecer na terra, abdicando de suas funções divinas, até que lhe devolvessem a filha. […]
Provocada por ela, uma seca terrível se abateu sobre a terra. Em vão Zeus lhe mandou mensageiros, pedindo que regressasse ao Olimpo. A deusa respondeu com firmeza que não voltaria ao convívio dos Imortais e nem tampouco permitiria que a vegetação crescesse, enquanto não lhe entregassem a filha. Como a ordem do mundo estivesse em perigo, Zeus pediu a Plutão que devolvesse Perséfone. O rei dos Infernos curvou-se à vontade soberana do irmão, mas habilmente fez que a esposa colocasse na boca uma semente de romã (cujo simbolismo se comentará depois) e obrigou-a a engoli-la, o que a impedia de deixar a outra vida. Finalmente, chegou-se a um consenso: Perséfone passaria quatro meses com o esposo e oito com a mãe. Reencontrada a filha, Deméter retornou ao Olimpo e a terra cobriu-se, instantaneamente, de verde.”
etapas da travessia de Vênus retrógrada pelo Sol
Ocidental e sob os raios do Sol — 3 a 7 de agosto
No dia 3 de agosto, Vênus entrou sob os raios do Sol. Essa etapa se chama última visibilidade vespertina, pois é a despedida de Vênus dessa fase ocidental, em que ela fica visível após o pôr do Sol. A partir daqui, cada dia mais próxima do astro-rei, ela desaparecerá sob a luz solar, ficando invisível no céu.
Um planeta “sob os raios” fica limitado de manifestar sua própria natureza. No caso da Vênus, com seus significados de união, beleza e prazer, o prejuízo vem justamente nesses assuntos. A influência venusiana vai se diminuíndo. A parte mais favorável do período de um planeta sob os raios tem a ver com tomar parte de atividades secretas, ações discretas ou sigilosas, etc — coisas pelas quais não se busca conhecimento público, ou que precisam ocorrer bem fora da vista mesmo.
Combustão — 8 a 17 de agosto
A partir do dia 8, Vênus adentra mais profundamente na zona de invisibilidade dos raios do Sol, ficando combusta. Esse é o período mais “feral” do trânsito da Vênus em Leão: ela fica mais arisca, territorialista e exigente, pouco empática e receptiva. Nos relacionamentos, pode haver possessividade, disputa por autoridade, ultimatos, esse tipo de coisa. É um período que tende ao comportamento inflexível e orgulhoso, então vale maior atenção e cuidado nesse sentido.
A conjunção exata de Vênus e Sol se dá na manhã do domingo, 13 de agosto. Ao longo desse dia, Vênus estará totalmente imersa na luz solar, absorvida por ele. Pode-se pensar nesse evento como um rito de purificação — não necessariamente fácil ou tranquilo, mas transformador. Queimar para ressurgir. É um fim e um novo começo.
É bom saber que muitos astrólogos irão chamar essa conjunção exata de cazimi, um termo que se refere à uma condição especial de quando um planeta está no coração do Sol. A meu ver, embora essa possa ser uma conjunção importante e propositiva, essa Vênus não estará cazimi — não vou entrar nessa questão técnica hoje, mas já escrevi sobre esse tema na edição #18.
Oriental e sob os raios do Sol — 18 a 23 de agosto
A partir do dia 18, Vênus se livra do estado de combustão, ganhando distância suficiente do Sol, estando agora apenas sob os seus raios. Em 22 de agosto, último dia do Sol em Leão, ela começa a ganhar espaço suficiente e se prepara para ressurgir no céu. No dia 23, o Sol deixa Leão, ingressando no signo de Virgem.
Ascensão heliacal — 24 a 25 de agosto
Nesses dois dias, Vênus ressurgirá no céu, agora oriental ao Sol, como estrela da manhã, fase na qual permanecerá até junho do próximo. No dia 3 de setembro, Vênus encerra sua retrogradação, retomando o movimento direto. Os últimos dias de agosto e início de setembro são, portanto, extremamente benéficos para os assuntos venusianos, vindo a favorecer o que é pertinente à esse planeta.
O astrólogo Abu Mashar, que viveu no século 9, escreve que o ressurgimento de Vênus no céu “indica uma abundância de honra para reis e nobres, a solidez dos negócios dos governantes, [mas também] o aparecimento de doenças resultantes do calor e da umidade”3 [tradução livre].
renovação e regeneração de vida
De certa forma, a travessia de Vênus pelo Sol é uma narrativa de resurreição — uma história de regeneração de vida, que proporciona força e vitalidade; é uma passagem pelo Sol em Leão, afinal de contas!
O retorno da Vênus como estrela da manhã também é uma reinauguração de possibilidades, um novo começo nos campos do que ela representa: atividades eróticas e sexuais; fazeres artísticos em suas múltiplas formas, cuidados pessoais, higiene e estética; práticas de mediação, ritualização e diplomacia, etc. Algo se principa nessa próxima conjunção inferior do dia 13 de agosto, e poderá ser amadurecido e colhido na conjunção superior seguinte, em 4 de junho de 2024.
Em termos astrológicos, o renascimento de Vênus como estrela matutina modifica seu significado e a forma como ele se manifesta. Como escreve Gramaglia,
“Quando Vênus e Mercúrio surgem como estrelas da manhã, elevando-se acima da coroa do sol nascente, associa-se seu significado com o dia, uma vez que estão cheios de sua força, impulsionando à ação e expressão franca e direta, revelando todos os contornos que a luz do dia facilita.” [tradução livre]
A Vênus que ressurgirá oriental ao Sol após 13 de agosto ganha, portanto, uma expressão mais espontânea, jovial, ávida e talvez um tanto mais “entregue” e impulsiva em sua afetividade.
A partir de agora, algum tipo de transformação fundamental começa a se desenhar. É possível que ela envolva justamente temas e conceitos que apresentei na primeira edição sobre esse trânsito — amor próprio, confiança e ganho de consciência são alguns deles. Para cada um de nós esse cenário toma formas e contornos específicos, mas exprime algo comum que tem a ver com revisão do que nos é realmente valoroso — o que alimenta o fogo de dentro, afinal. Como escrevi naquela ocasião, “negar a própria verdade é um suplício que não compensa”. Nas próximas semanas, em especial, esse é um lembrete que vale carregar bem perto de si.
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um abraço e até a próxima,
Ísis
GRAMAGLIA, Eduardo. Astrologia Hermetica: Recobrando el Sistema Helenistico. Buenos Aires: Editorial Kier, 2007.
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega — Volume 1. Petrópolis: Vozes, 1986. p.290-292
YAMAMOTO, Keiji; BURNETT, Charles. Abu Ma'Sar on Historical Astrology: The Book of Religions and Dynasties on Great Conjunctions. Leiden: Brill, 2000.
trecho citado: Volume I, Parte Cinco, Capítulo 4
Ísis, acho que esse é um dos melhores textos que você já produziu aqui! Inclusive queria dicas de como ter tanto tempo pra pesquisa e leitura sendo que vc faz 900 coisas hahah sério, bateu forte no coração. Inclusive bateu forte com coisas que estão acontecendo, vou contar detalhes por zap. kkkk
um beijo, te admiro muito.
Que texto maravilhoso!! Ísis, uma dúvida: esses ciclos planetários está relacionado com as direções por termo do ascendente? Eles duram quanto tempo mais ou menos? Porque eu lembro que quando vc leu meu mapa em 2021 eu tinha acabado de entrar num ciclo de Vêneus e menina essa Vênus retrógrada tá sendo intensa. A vida por aqui também virou de pernas pro ar hahaha